Ópera- cap. 28 (último capitulo)


Ópera- cap. 28 (último capitulo)

“Duvida da luz dos astros,
Duvida que o sol tenha calor,
Duvida até da verdade,
Mas confia em meu amor.”
William Shakespeare.



O som de água lhe acordou.
Thur abriu seus olhos devagar, varrendo a sua volta. Estava no nada. Era exatamente esse o lugar onde estava... Nada.
Sentou-se, percebendo que estivera deitado em uma superfície sólida e gelada, coberta pela neblina densa do local. Não via início nem fim. Só uma imensidão gélida, enevoada e vazia.
Pôs-se de pé observando suas estes. Ainda usava o smoking preto que vestira para a ópera. Ao lembrar-se disso, levou as mãos na cabeça, que reagiu à memória com um forte latejar.
Ainda conseguia ouvir o barulho de água. Água. Talvez fosse para lá onde devesse ir, para perto da água.
Caminhou, sentindo seu andar mais leve do que nunca, para onde intuía que vinha o barulho. Depois de um tempo de sua andança, observou uma silhueta preta coberta pela névoa, sentada às margens de um lago.
Aproximando-se, percebeu que a sombra pertencia a uma mulher fina e esguia, que brincava com as águas turvas.
- Luinha? – chamou.
Mas quando a garota inclinou a cabeça, atendendo ao chamado, Thur sentiu que seus batimentos teriam se acelerado... Se ainda tivesse algum. A menina de longos cachos dourados se levantou com um sorriso débil, caminhando até ele e lhe envolvendo em um abraço saudoso. Arthur retribuiu, ainda incerto se o que via era realidade.
- Eu sempre – disse Iv. - Sempre ouvi tudo o que você me disse, meu amor.
Thur arregalou os olhos. A lembrança de Duan apontando uma arma para Luinha aparecera nítida em sua mente. A lembrança da menina fechando os olhos para receber a morte. A lembrança de ter se jogado na frente e ter tido o peito perfurado.
- Eu morri? – perguntou em um murmúrio.
Ivane fitou-o com os olhos magoados. Era possível ver que ela segurava o choro.
- Ainda não.
- E onde nós estamos? – ele disse ainda absorvendo as palavras da menina.
- Na Passagem. – ela esclareceu. – É pra onde as pessoas que estão entre o mundo dos vivos e dos mortos vão.
Arthur sorriu frio.
- Claro.
- Thur, será que você não entende? – ele voltou seus olhos para os suplicantes de Ivane. – Podemos ficar juntos pra sempre. Eu e você, como nós tínhamos planejado. Eu te amo.
Arthur olhou Iv dos pés a cabeça com o ar suspeito. Fixou-se nos olhos da loira erguendo uma sobrancelha. Sua face não estava nada satisfeita.
- Se me ama tanto, por que mentiu pra mim?
- Como? – ela pareceu surpresa.
- Por que disse que estava grávida, Ivane?
Ela ficou com a expressão de confusão durante algum tempo, mas depois retomou o fio da meada.
- Porque senão você nunca me perdoaria. Você nunca... Nunca teria me pedido em casamento.
- Eu te pedi em casamento porque queria dar um lar à criança, Iv.
- E eu disse que estava grávida porque queria me casar com você. Eu queria estar ao seu lado pra sempre. Quando nos casássemos, era só uma questão de tempo para que eu engravidasse de verdade...
- Você me fez de bobo.
- Arthur. – ela revirou os olhos. – Por favor. Eu nunca te fiz de bobo. Só queria que as coisas voltassem a fica bem entre nós. Quer maior prova de amor?
- Honestidade. – disse educadamente.
- Estou sendo honesta com você agora: eu te amo. Depois de todo esse tempo sem você, sem te ver... Eu nunca tive tanta certeza disso quanto tenho agora. Eu sei que você me ama também. Eu podia ouvir as suas preces. E agora, querido, podemos voltar a ficar juntos. Tudo o que você tem que fazer... – ela estendeu uma das mãos pálidas pra ele. – É segurá-la.
Nesse momento, outra voz feminina rompeu a Passagem. Uma voz distante, um eco, mas que foi o bastante para desviar a atenção de Arthur.
- Arthur! Arthur por favor, não me deixe. Thur, eu amo você! – Lua gritava.
- Não dê ouvidos. – Ivane cortou. – Segure a minha mão, Thur, e você vai ter tudo o que sempre quis. Eu e a morte.
A voz de Luinha ecoou novamente.
- Por favor, Thur. Eu não sei se você pode me ouvir, mas eu te amo. Você não pode me deixar. Eu amo você, Aguiar.
Com a feição de poucos amigos, Ivane repetiu.
- Ignore.

Enquanto isso, Rod acomodava a prima em seus braços, na sala de espera do hospital.
- Vai ficar tudo bem, minha baixinha. – ele murmurava.
Mel e Chayzito estavam escorados na parede, olhando desolados para a sala de cirurgia onde Thur estava sendo tratado. Mica havia ido comprar um lanche para Sophia, durante a espera.
- Eu não acredito que por tanto tempo o discriminamos para terminar assim – os olhos de Melzinha se encheram d’água. -, com o coração na mão para saber se ele vai ficar bem.
Chayzito suspirou.
- Duan. Quem diria?
E assim outro longo silêncio voltou a se instalar entre os amigos. Todos com medo de tornar o clima ainda mais pesado do que já estava.
Lua, vestindo algumas roupas confortáveis que Rod tinha levado para ela até o hospital, era abraçada ainda mais forte pelo primo toda vez que soluçava.
Sua história de amor não podia acabar assim, ela pensava. Cadê o final feliz que tanto encontrava nos romances que lia? Agora Arthur estava lá, a beira da morte por ter se jogado na frente de uma bala para salvá-la. As coisas não deveriam ser assim.
Ele tinha que sobreviver.
Pensou no corpo de Duan enrolado por uma lona preta, quando as ambulâncias chegaram. Pensou em Brittany sendo arrastada pelo camburão, e nos policiais que agora iam atrás de Kimberly.
Ao notar que embaixo de suas unhas ainda havia sangue, Lua voltou a chorar. Nem se importava mais com as faixas em seu ombro. Nem se importava com o fato de ainda haver sangue de Duan em seus cabelos.
O homem, aquele que ela amava, aquele por quem era desesperadamente apaixonada, estava morrendo. E morrer, ela sabia, significava nunca mais estar com ela.
Como Luinha passaria a vida sem mais ouvir suas risadas? Como ela lidaria com o fato de não poder mais ver o progresso de seus olhos, antes tão obscuros e agora tão brilhantes quando uma noite estrelada? Como seria não ouvir sua voz? Como seria não ouvi-lo dizer seu nome...
“Minha Luinha”. Era o que ele sempre dizia. Mas ela sabia, no fundo sabia, que seu subconsciente nunca guardaria com lealdade o timbre de voz deAguiar. Como seria, dali em diante, passar os dias sem dividir sua vida com ele? Sem compartilhar longas conversas ou envolvê-lo em ternos abraços?
Lua pensou no que nunca mais teria. Não teria mais o calor que sentia quando o via. Não teria mais o coração disparado pela mesma pessoa. Não teria o sabor de seus beijos.
Ela não seria mais a mesma pessoa.
Enquanto chorava baixo, para não interferir na recuperação de nenhum dos pacientes do hospital, ouviu Rod sussurrar:
- “Em tempo algum teve um tranqüilo curso o verdadeiro amor”.

- Só basta – Ivane disse. – segurar a minha mão.
Thur olhou vacilante da mão estendida de Ivane para seu rosto decidido.
“Então é isso?” ele pensou “A morte?”
Arthur lembrou-se de todas as vezes pelas quais chamou pelo fim. Lembrou-se das vezes em que pensou em suicídio, de quantas vezes sonhou em ser abraçado pela morte. Mas ali, revendo a mulher pela qual quase acabara com a própria vida, isso não parecia ter mais sentido. Ali, olhando os olhos mordazes de Ivane, clamar pela morte já era algo distante de sua realidade.
Ainda mais quando ouvia a voz de Lua ecoando no fundo da Passagem. A voz baixa e desesperada. A voz que chamava por ele, que dizia que o amava.
Enfim tinha chegado a um ponto em que teria que fazer a escolha mais importante de sua vida.
Ivane, de um lado, com sua beleza mórbida e seus grandes cachos dourados. Seus olhos azuis ferinos voltados na direção do garoto quase lhe queimavam a pele. Em seu longo vestido branco, Whinsky parecia um anjo. Sim. Mas um anjo da morte.
Ela estava ali como representante do fim. Como representante do falecimento.
Lua, por outro lado, estando presente apenas pela voz, representava toda a vida a qual ele revogaria se segurasse a mão de Iv.
Lua e Ivane. A vida e a morte.
De repente para Thur, tudo ficou escuro.

Alguns “bips” regulares insistiam em soar em seus ouvidos. Uma, duas, três vezes. Isso o estava incomodando tanto que fez questão de abrir os olhos.
Para sua decepção, isso seria mais difícil do que imaginava. Parecia ter algum peso de papel sobre suas pálpebras e o resto do corpo estava insensível.
Era isso. Tinha morrido.
Thur suspirou com aquele entendimento, mas depois estarreceu. Ele suspirou! As batidas agora sensíveis, porém fracas, do seu coração também só podiam indicar uma coisa: ele estava vivo.
Thur tentou novamente abrir os olhos, mas sem sucesso. No intuito de ser notado, tentou abrir a boca para dizer alguma coisa, mas ainda não sentia seus lábios. Apenas forçou o ar com a garganta, recebendo em resposta um pequeno ronco.
Como não ouviu nenhum barulho a sua volta além dos bips incômodos, resolveu que era necessário ver o que se passava. Precisava olhar. Novamente forçou suas pálpebras, recebendo como resposta positiva a invasão de suas pupilas por uma luz aguda.
O teto era branco. Foi a primeira coisa em que Thur pensou assim que sua consciência voltou. Virou a cabeça com alguma dificuldade para seu lado direito, onde alguns aparelhos médicos estavam instalados. Ah, sim. Era daí de onde os bips vinham.
Moveu o corpo novamente para mirar seu lado esquerdo, e lá, com uma surpresa que acalentou seu interior, Thur encontrou Lua debruçada sobre o colchão onde estava deitado. Dormindo.
Arthur sorriu enquanto esticava seus dedos na direção da menina, para acariciar seus cabelos. Quando conseguiu dominar os movimentos de sua mão, tocou a testa de Luinha com maciez.
Mas isso foi o suficiente para que ela pulasse da cadeira de onde estava sentada, alarmada. Quando fixou seus olhos nos de Thur, vivos e abertos,Lua voltou imediatamente a se sentar, tomada pela emoção de vê-lo desperto.
- Ai, meu Deus! – ela disse com os olhos molhados. Seu sorriso se estendia de uma orelha a outra. – Eu não acredito. Isso... Não é um sonho. Thur, você está bem! – ela gritou. – Ah, céus! Eu tenho que avisar as enfermeiras. Eu tenho que chamar a Martha.
Lua se levantou esbaforida seguindo até a mesa de cabeceira e telefonando rapidamente alguns números no telefone branco, assim que deu seu recado, colocou-o novamente na base e olhou o garoto, que lhe sorria fracamente.
- Thur, - colocou a mão em sua bochecha. – o que você está sentindo? Está com dor em algum lugar? Está com fome?... Mas que tipo de pergunta é essa? – Luinha disse para si mesma, rolando os olhos. – É óbvio que você está com fome. Não come nada há uma semana! Eu vou pedir pra Martha trazer...
Thur colocou o dedo indicador mansamente sobre os lábios de Lua. Olhou-a com seus olhos aveludados e proferiu:
- Já te disseram que você fala demais?
- Acho que alguém já disse, só não consigo me lembrar quem. – ela sorriu.
Thur apoiou-se nos braços para se sentar, e quando assim fez, recostou-se no encosto na cama.
- O que aconteceu?
Luinha o olhou atônita durante alguns segundos.
- Vocês não de lembra de nada?
- Lembro. – ele falou com pesar. – Quero saber o que aconteceu depois daquilo.
- Ah, bom... – Lua olhou pra baixo, tentando encontrar palavras para dizer o que queria. – A Brittany foi presa. Kimberly, o porteiro e até aquele traficante... Finn. Estão todos na cadeira.
Arthur consentiu, depois seu olhar ficou vago.
- E o Duan?
Lua mordeu o lábio inferior, esticando seu braço direito e segurando a mão do amado com delicadeza. Olhou-o profundamente nos olhos e disse baixo:
- Thur, ele morreu.
Arthur abaixou o olhar, sentindo o embaçado lhe preencher as vistas. Depois de clarear sua visão ao deixar duas lágrimas sofridas rolarem, votou a fitar Lua.
- Como?
- Ele deixou a arma cair quando te atingiu. E ao vê-lo já sem cor, Brittany se desesperou e... – as bochechas de Luinha estavam coradas, seus olhos nebulosos.
Arthur entendeu o que ela quis dizer, soltando um longo suspirou e limpando suas bochechas molhadas com as costas das mãos.
Apesar do que tinha feito, Duan sempre fora e sempre seria seu irmão.
- Por que ele assassinou Ivane? – quis saber.
- Thur, os psicólogos encarregados chegaram à conclusão de que... Quando os pais de Duan faleceram no acidente de carro, ele ainda estava formando sua identidade, sua personalidade. E foi então que você apareceu. Seu melhor amigo. A única pessoa que ele tinha... Alguns exames feitos há alguns anos pelo psicólogo particular da família Adams comprovavam que ele tinha distúrbios mentais. Duan desenvolver um sentimento de posse e obsessão sobre você. Não tinha como ninguém saber...
- E ele não me suportava ver amando outro alguém. – Thur completou com o ar dolorido. – Entendo... Mas isso não explica o porquê de ele ter assassinado a senhora Paskin.
Lua respirou fundo.
- Ela encontrou um papel enquanto organizava as folhas de detenção. Um papel onde dizia que, no semestre anterior ao assassinato – Lua fechou os olhos com aflição ao pronunciar -, Duan e Ivane tinham sido encontrados juntos no banheiro feminino. Ele matou a Paskin para que ela não levantasse suspeitas para o lado dele.
Thur levantou as sobrancelhas, deixando transparecer a sua surpresa.
- Me desculpe se eu te magoei, esse era a última coisa que eu queria, mas...
- Não magoou. – ele sorriu torto.
- Brittany foi responsável por atropelar Mel. Não creio que se tenham provas contra isso, mas quanto ao assassinato de Duan... Disso ela não pode escapar. Além do mais, Rod entregou os documentos em que ela e Kimberly ordenavam uma droga ilícita.
- Então realmente era tudo parte de um complô. – ele deu uma risada seca. – É entendível. Ivane nunca foi uma pessoa adorável.
O olho direito de Lua expulsou uma lágrima, que correu lentamente por seu rosto.
- Olha, eu sinto muito. Sinto muito por tudo. Sinto muito pelo que você está passando, sinto muito por você ter tido que se jogar na frente de um revólver pra me salvar. Eu não queria nada disso. Nunca quis que você sofresse. Thur, eu...
E então alguém abriu a porta do quarto. Era Martha com um doutor em seu encalço.
Quando terminaram de medir a pressão de Thur e constataram que o menino estava saudável, a mulher rechonchuda se ofereceu para buscar uma sopa pra ele. Martha estava maternalmente preocupada com Thur, o tempo todo querendo saber se o travesseiro estava confortável ou se ele queria que ela instalasse TV a cabo no quarto.
Thur aceitou a sopa, depois disse que queria um pouco de sossego. Não estava bem para se submeter aos demais exames naquele dia.
Assim que Martha e o médico saíram do quarto, Thur voltou-se para Luinha com um sorriso secreto no rosto, seguido por um olhar penetrante.
Lua encarou-o em interrogação.
- Eu não esqueci a resposta que você me deve.
Luinha corou.
- Ah, isso.
- É. Isso. – falou enfático.
A menina respirou fundo.
- Eu não vou te dar a resposta agora, Thur. Só vou dizer quando você melhorar.
Arthur olhou-a cabisbaixo. Transpareceu em seus lábios um sorriso conformista.
- Isso significa que ficarei de coração partido?
Lua riu.
- Isso significa que só vou te dizer quando você melhorar. Talvez você use a curiosidade como estímulo para se curar depressa.
Ele analisou a menina de cima a baixo. Lua vestia um sobretudo bege de botões pretos por cima do que parecia um vestido branco. Sua postura estava nervosa. Suas mãos juntas e apertadas sobre o colo. Nas bochechas, Luinha vestia um leve tom de rosa.
- Enquanto eu estava desmaiado – Thur disse baixo, ainda incerto se deveria tocar no assunto. – jurei ter ouvido você dizer...
- O quê?
- Jurei ter ouvido você dizer que me amava. – o leve tom rosado nas bochechas de Lua se tornou um escarlate. – Sou muito tolo por pensar algo assim?
Ela deu um riso envergonhado.
- Imaginar coisas como essa não é tolice, Arthur.
Thur se recolheu, olhando para as pernas cobertas pelo lençol azul e chegando a conclusão mais óbvia que aquela situação o permitia: ele tinha sonhado com isso.
Antes que pudesse se pronunciar novamente, Lua se colocou de pé.
- Já está tarde. – olhou o relógio. – Tenho que ir. Não tenho permissão pra passar a noite aqui com você consciente.
Lua se aproximou do colchão onde Thur se encontrava reclinado. Aproximou seu rosto do dele vagarosamente e lhe deu um selinho solene, sentindo com satisfação o calor dos lábios do rapaz.
- Se você não vai passar a noite aqui – Thur começou a perguntar assim que ela afastou o rosto do seu. -, quem vai?
A maçaneta girou rapidamente, revelando o rosto de um garoto lácteo e magrelo. Rod sorriu assim que os viu.
- Boa noite, flor da noite. – sorriu pra Thur, que deu uma risada fraca.

Rod revirou-se no sofá onde estava deitado pela milésima vez, sem conseguir pregar os olhos. A luz da lua era a única iluminação do quarto de hospital.
Virando para o lado contrário de Rod, enroscado nos lençóis azuis, estava Thur.
- Hm... Aguiar? – Rodrigo perguntou, sem obter nenhuma resposta. – Aguiar? Aguiar você está acordado?
Thur deu um muxoxo, depois se virou para Rod com os olhos brilhosos cravados em seu rosto.
- Agora estou.
- Ah, desculpe. – falou sem graça.
Quando Arthur balançou os ombros para voltar a se virar para o outro lado, Rod prosseguiu:
- É que eu estava pensando...
- No quê, Marques?
- No quanto eu sempre estive errado a seu respeito. Eu sinto muito por isso. Não queria ter sido injusto hora nenhuma.
- Não é sua culpa. – a voz de Arthur saiu abafada pelo cobertor. – Eu também não deixaria Lua se aproximar de nenhum suspeito de assassinato. Você só fez seu papel de bom primo.
Rod sorriu leve.
- É, eu sei. Mas não deu muito certo já que tive que injustiçar alguém.
- Eu compreendo seu lado, mesmo. – Thur falou fechando suas pálpebras. – Marques eu só... Preciso dormir um pouco agora.
- Ah, claro.
Rodrigo concordou imediatamente. Depois de um tempo olhando o teto iluminado do quarto e se decidindo se colocava ou não sua canela para fora do cobertor azul que tinha levado, Rod voltou a falar:
- Hm, Aguiar? – esperou a resposta durante algum tempo, que veio em forma de ronco. Rodrigo sorriu carinhoso, depois completou: - Eu só queria agradecer.

Três dias depois, liberado para voltar pra casa, Thur foi recebido pelos amigos na porta do hospital.
O Fiesta vermelho de Mica já estava aberto para recebê-lo, assim como os braços de Mel, Rod, Chayzito, Micael e Sophia.
- Que bom que está melhor, Thur! – Sophia disse recepcionando-o com um buquê de rosas amarelas e lhe dando um abraço apertado.
- Arthur, tenho que admitir que você foi muito corajoso. – a próxima na fila do abraço era Mel. – O que você fez pela Iv... Não, o que você fez pelaLuinha é indescritível. Você conseguiu provar que a nobreza é algo difícil de se encontrar, Aguiar. Ainda mais em tanta abundância quanto você possui.
Chayzito era o próximo, aproximando do menino e lhe dando alguns tapinhas nas costas.
- Nunca pensei que poderíamos ficar tão preocupados com você, mate. Você precisava ver a cara com que todos estávamos durante a cirurgia. Era de assustar!
Thur sorriu, agradecendo a atenção e o carinho de todos.
- Eu sabia que você não ia morrer! – Mica gritou, abraçando-o ainda mais apertado que Sophia. Thur gargalhou. – Eu apostei dez reais com a Kelly Sparks que você saia dessa sem nenhum hematoma. E adivinha só? Nunca recebi dez reais com tanta felicidade na minha vida.
Arthur gargalhou ainda mais, virando seus olhos para Rod e estendendo-lhe a mão.
- Amigos? – Thur perguntou.
Rod sorriu.
- Para o que der e vier. – e chacoalhou a mão do rapaz.
Arthur varreu sua volta com os olhos, sentindo uma pontada no coração por não ver uma pessoa em particular. Uma pessoa que, durante os três dias que se passaram, não tinha ido vê-lo no hospital.
- Cadê a Luinha?
Os amigos se entreolharam. Ficaram alguns segundos em silêncio até que Mel respondeu por todos:
- Ninguém sabe. Tentamos contatá-la, mas... Não obtivemos nenhum sucesso.
Thur abaixou a cabeça, deixando a decepção e a mágoa tomarem conta de seu corpo.
Então de fato, a resposta da garota seria “não”. Ela não o amava como Thur pensava. Se amasse, com certeza estaria preocupada com ele e a sua espera. Pelo menos era isso o que Arthur achava.
- Vem, Aguiar. – Mica falou, tirando uma mala de roupas que estava na mão de Thur e alojando-a no porta-malas do carro. – Eu te levo pra casa!

Longe dali, Lua contemplava os escritos cravados em um mármore negro, no cemitério West Norwood. Abaixou-se para tirar um pouco da neve que cobria a data de óbito da garota, olhando com os olhos embargados seu nome:
“Ivane Cornélia Whinsky”.
- Thur me disse – Lua começou, vendo um vapor de água se formar na frente de seu rosto. – que cada flor tem um significado. Eu não estou muito certa do que elas querem dizer, mas quando pesquisei na internet, disseram-me que as rosas rosadas significam gratidão. Estou trazendo aqui pra você, Iv – Luinha tirou uma rosa de dentro do sobretudo preto. – essa flor para expressar o meu agradecimento. Se não fosse por você eu não teria me aproximado tanto dos melhores amigos do mundo. Se não fosse por você, eu não teria conhecido o homem que... Bem, se tornou o guardião de todo o meu amor e paixão. O homem que eu amo mais do que amei qualquer outro. – Lua colocou a rosa em cima dos montes de neve que cobriam a terra. – Você era realmente uma garota de sorte e eu te agradeço muito, Ivane Whinsky.
Quando deu as costas e começou a caminhar pelo tapete branco de gelo, em direção ao Civic prateado, sentiu um vento cortante e diferente dos demais passar por seu rosto.
Lua sorriu, sabendo que, aonde quer que estivesse, Ivane tinha recebido a mensagem.

Depois de alguns minutos, Mica estacionou o carro vermelho na frente de um grande prédio em Dockland. Olhou para Thur pelo retrovisor, sentado no banco de trás. Sophia, no banco do carona, sorria generosa.
- E é aqui que nós ficamos.
Arthur olhou saudosamente o apartamento, sentindo seus olhos ficarem quentes durante alguns segundos. Conteve seu choro, abrindo a porta do carro e se dirigindo ao porta-malas para pegar sua mala. Assim que a pegou, aproximou-se da janela de Mica.
- Muito obrigado pela carona. Espero que vocês sejam uma família muito feliz.
Sophia corou enquanto Micael abria um sorriso enorme.
- Seremos.
Thur caminhou até a recepção, onde o porteiro o recebeu tirando o chapéu, em sinal de cumprimento e respeito. Ele respondeu com um aceno de cabeça.
Girou a chave do seu apartamento sentindo a exaustão lhe alcançar. Ainda sentia o peito e as costelas doloridas, e por mais que sentisse falta da caminhar com Spike, teriam que adiar o passeio para outro dia.
Foi daí que outro tópico invadira sua mente. Spike. O amigão deveria estar faminto.
Quando puxou a maçaneta, esperando que o cachorro aparecesse correndo e pulasse em seus ombros, foi decepcionado pelo silêncio. Nenhum sinal de Spike.
Thur entrou no loft, examinando o local onde a comida de Spike geralmente ficava. Sua tigela estava cheia. Virou seus olhos para o outro lado e tampou a respiração quando viu Luinha observando a cidade por sua parede de vidro, sentada no chão enquanto acariciava o Golden.
Lua estava imersa pelas luzes que via sem ter movido uma palha quando ele entrara no apartamento. Thur deduziu, então, que ela ainda não o havia percebido.
Fechou a porta com cuidado e caminhou até ela a passos de formiga, para que a menina não despertasse de sua ilusão. Quando chegou, sentou-se atrás da garota e sussurrou em seu ouvido:
- Eis a minha dama. – viu Luinha arrepiar. – Surge, formoso sol, e mata a lua de inveja, que se mostra pálida e doente por ter visto que és mais formosa que ela.
Lua sorriu, escorando a cabeça no peito de Thur e suspirando ao ouvir sua citação de Shakespeare.
- Ai de mim. – ela completou com a frase de Julieta.
Thur abraçou-a por trás, passando carinhosamente o nariz em seu pescoço enquanto sussurrava:
- Fala de novo, anjo brilhante.
- Arthur, Arthur. Por que és tu, Arthur?
Lua citou outro trecho de Romeu e Julieta que tinha aprendido durante seu trabalho. Preferia manter as coisas assim, enquanto ainda falavam sobre Shakespeare. Se mudassem de assunto, a resposta que teria que dar a ele, aquela que fazia seu coração disparar e suas bochechas enrubescerem, teria que ser dada logo.
- Continuo ouvindo-a mais um pouco ou será que lhe respondo? – Thur falou como se para si mesmo.
- Arthur, risca teu nome, e, em troca dele, que não é parte alguma de ti mesmo, fica comigo inteira.
Thur aninhou ainda mais a menina em seus braços, chegando a boca perto de seu ouvido e sussurrando, dessa vez não como Romeu, mas comoArthur.
- Dá-me o nome apenas de amor e ficarei rebatizado. De agora em diante, não serie mais Arthur Aguiar. – Lua expirou fechando os olhos e assim ficou durante um largo momento. Thur apenas acompanhou a respiração da menina, até reaproximar seus lábios de seu ouvido e novamente sussurrar: - Namora comigo.
Lua abriu os olhos envergonhada e virou seu tronco até que estivesse de frente para o dele. Quando pôde mirar o olhar abrasado de Thur, sorriu e lhe disse o que estava guardando para si desde a fatídica ópera:
- Se você me perguntasse mil vezes, mil vezes eu diria sim.
Thur sorriu. O sorriso mais feliz que já tivera durante toda sua vida.
Seu coração estava feliz, em paz. Para Thur era impossível descrever a sensação de se pertencer a algum lugar. E ele sentiu que pertencia ali. Pertencia àquela garota, àqueles amigos.
Ele tinha amigos. Amigos verdadeiros, que não lhe queriam mal. Amigos que o recebiam no hospital. Que se preocupavam com ele. Que choravampor ele.
Tinha ao seu lado, para caminhar com ele, a menina por quem era, e sempre tinha sido, apaixonado. Acreditava que o amor despertado por Lua tinha feito parte dele desde que nascera, mas só então pode surgir com tamanha intensidade.
Pensava sobre tudo isso enquanto mergulhava no beijo mais apaixonado e fervoroso...

Quatro meses depois...

Rod andava de um lado para o outro no corredor branco, com a impaciência. Olhava o relógio de cinco em cinco segundos, sem conseguir conter a ansiedade que sentia.
- Rod, - disse Mel em seu “educado agudo” – você quer fazer o favor de sentar?
Ela, Chayzito, Thur e Luinha estavam sentados nas cadeiras verde-água da sala de espera. Os casais estavam com as mãos dadas, vez ou outra trocando um olhar carinhoso. Rod, que era o único sozinho, caminhava a passos largos da esquerda para a direita, sem se cansar do movimento.
- Eu não consigo. – Rod falou com a voz desesperada. – Eu estou muito ansioso.
- Mate, se eu fosse você eu sentava – Chayzito aconselhou. – Daqui a pouco é você quem vai ter um...
Mas antes que ele terminasse a frase, um senhor de aparentes cinqüenta anos, com um longo bigode cinza, saiu pela porta verde-claro, na frente da qual todos estavam. Os amigos se levantaram, observando o homem com a feição séria. O jaleco branco que ele vestia, além de seu porte elegante, reforçava ainda mais seu ar de profissionalidade.
- Vocês podem entrar – ele deu um passo para longe da porta. Quando Rod segurou a maçaneta esbaforido, o médico alertou. – Mas em silêncio.
O quarto estava banhado com a luz do sol, que passava pela janela quadriculada. Mica estava debruçado sobre o colchão onde Sophia estava sentada, carregando um pequeno embrulho de lençóis azuis no braço.
Sop estava com os olhos molhados, o que não era nem de longe como Mica estava: emocionado de tão forma que mal conseguia abrir os olhos sem que esses derramassem lágrimas.
Rod esgueirou-se até o lado do amigo, esticando a cabeça para ver o rosto do pequeno neném.
O pedaço de gente era gordinho e rosado. Seu único tufo de cabelo, enrolado na cabeça, assemelhava-se aos que Mica possuía quando era mais novo.
- Posso carregar minha afilhada? – Rod cochichou.
Sophia consentiu passando o pequeno embrulhinho para seus braços. Rodrigo sentiu os joelhos fraquejarem ao sentir o calor emanado daquela criaturinha. Deu um sorriso maior que o rosto e a levou até onde os demais amigos estavam esticando-se para mirar a recém-nascida.
- Sop – Mel disse com os olhos empoçados. -, ela é maravilhosa!
- É, não é? – foi a vez de Mica dizer. – Vou ter que ficar de olho na minha pequena Chelsea.
- Chelsea. – Chayzito falou sorrindo e enrolando ainda mais o cachinho da criança com o dedo. – Devia ter suspeitado que seria a sua escolha.
Lua, ao ter o bebê a sua frente, acariciou a cabecinha de Chelsea, observando o quão pronunciada suas bochechas eram. Thur, apesar de completamente sem traquejo fosse com adultos ou bebês, apenas esticou seu dedo indicador na direção do neném. Quando encostou no peito arfante de Chelsea, a pequenina segurou-o.
Lua o olhou com um sorriso cheio de admiração e carinho, depois se virou para o bebê, que se esforçava para abrir os pequenos olhinhos.
- Gente, olha! – Luinha deu um grito sussurrado. – Ela tem os olhos azuis. Mica, ela tem seus olhos azuis!
Mica sorriu terno, olhando para Sop que estava se desmanchando em lágrimas. Ao abraçá-la de lado, Micael cochichou:
- Eu sempre disse que a filha era minha.
- Seu sangue ou não, ela sempre foi.
Então se selaram seus lábios em um beijo apaixonado.
Rodrigo, ao ver a cena, falou afetado.
- Acho que está na hora de sairmos do quarto, Chel. Imagino o quanto seja nojento ver mamãe e papai na maior agarração.

Caminhando pelo parque Russel, depois de terem saído do hospital, Lua e Thur resolveram descansar perto do lago. Luinha apoiou suas costas em uma das árvores e Arthur deitou a cabeça em seu colo, observando o rosto da menina.
Depois de um momento em silêncio, ele murmurou:
- Eu estive no céu.
Lua olhou-o, surpresa com a fala do namorado.
- O quê?
- Quando Duan me atingiu com uma bala. Quando fiquei preso entre a vida e a morte. – ele esclareceu. – Eu estive no céu, Luinha.
Ela ficou calada durante alguns instantes, acariciando os cabelos macios de Arthur. Retomando a coragem, perguntou:
- E como foi?
Thur olhou a amada nos olhos durante alguns segundos, depois, olhando para as nuvens, deixou seu olhar se esvaziar.
- Eu estive em um lugar cinza, gelado... Enevoado. Meu andar parecia tão leve quanto uma pena. Eu ouvia barulho de água, e quando me aproximei de um lago escuro, lá estava ela. Ivane.
Lua sentiu um nó na garganta, fechando seus olhos durante alguns momentos. Depois de dar um pigarro, tentando desembargar a voz, perguntou:
- Então o seu céu era com a Ivane?
Arthur riu.
- O meu céu, Luinha, foi quando no meio de toda a escuridão daquele lugar, eu escutei sua voz. Ecoando de longe, mas ainda assim a sua voz. Chamando por mim e dizendo que me amava. – suspirou. – Sei que você já me disse que isso foi fantasioso da minha parte, mas não posso negar que esse foi o grande motivo pelo qual eu decidi lutar pela vida. Seu amor.
Lua sorriu, voltando a sentir o coração disparado. Voltando a sentir as mãos suadas e todas as reações que tinha quando via Thur.
- E se eu te dissesse – sussurrou. – que não foi fantasia?
Thur fixou-a, com as sobrancelhas levantadas.
- Eu te diria que minha fantasia é agora.
- Na noite em que você levou o tiro, Thur, eu entrei em desespero. Como eu não fazia idéia do que fazer, pensei que talvez compartilhar meus sentimentos mais íntimos com você naquela hora pudesse fazê-lo voltar. – acarinhou o rosto do rapaz. – O que eu disse era tudo o que eu sempre quis dizer desde a primeira vez. O que eu disse, Arthur, era exatamente o que eu sentia e ainda sinto.
Thur se sentou, voltando a ficar de frente para Lua e elevando seu queixo de forma a poder olhá-la nos olhos.
- E o que, exatamente, você disse?
Luinha fechou os olhos.
- Que eu te amo, Aguiar.
Thur sentiu seu sorriso secreto ser formado, mas interrompeu-o quando juntou seus lábios com os da garota.
- Eu te amo, minha Luinha.


Ato final

50 anos depois...

- Não. – Marissa disse, enfim levantando seus olhos do livro e cravando-os em mim. – Não, não, não! Como assim ela volta pro Brasil, vó? Como assim?
Por pior que possa parecer, seu olhar de desespero me causava algum divertimento. A verdade era que eu estivera esperando essa reação desde que a entregara meu pequeno livro.
- Mas vó, me diz, ela volta pra Inglaterra, não é?
Caminhei devagar, percebendo que minha saia negra estava mais justa do que eu pretendia. Sentei-me ao lado dela, na cama de solteiro do quarto de hóspedes, e acariciei seu rosto fino.
- Se ela não voltasse, você não estaria aqui.
Os olhos de Marissa se arregalaram, e então, num átimo, ela se sentou na cama.
- Não brinca! – ela falou boquiaberta.
Sorri para ela, que continuava extremamente delicada em suas vestes pretas, e neguei com a cabeça. Eu não estava brincando.
- Essa é a história de como eu conheci e me apaixonei pelo seu avô. – falei. – Essa é a história sobre a qual jornalistas e fãs especulam tanto, a história que eles nunca conseguiram desvendar.
Marissa ficou um tempo me encarando com a expressão ininteligível, com seus grandes olhos castanhos piscando mais depressa do que anteriormente. Eu segurei sua pequena mão, mas depois fui obrigada a virar meu rosto para o lado para dar uma tosse seca.
- Vovó... – ela piscou, batendo sua cortina de cílios umas nas outras. – Eu não imaginava.
- Ninguém imaginava.
Antes que ela pudesse começar a esboçar a fala que estava preparando, ouvimos batidas leves na porta do aposento. Viramos nosso tronco para olhar – minha neta, claro, com mais facilidade que eu – e nos deparamos com Dimitri, neto de Rod.
Ele vestia sua blusa verde musgo, estampada com o nome de sua banda favorita. Seus jeans largos e desajeito me lembravam exatamente de comoRod era quando tinha essa idade. Dezesseis anos.
- Ah. – ele disse, arregalando seus olhos ao me ver. – Bom dia, senhora Aguiar.
- Bom dia, querido. – respondi.
Vi os olhos de Dimitri se desviarem para Marissa, que tinha se sentado no colchão assim que percebera a presença do rapaz. Minha neta tentou esconder de mim suas bochechas rosadas, mas era inútil. No ramo do amor eu já tinha bastante experiência.
- Hm... Marissa, eu vim te chamar pra dar uma volta no jardim. – então ele voltou a olhar pra mim. – Mas é claro que, se a senhora vir problema, eu não faço questão de atrapalhá-la...
- De forma alguma.
Marissa me agradeceu, despedindo-se de mim com um carinhoso beijo na bochecha e correndo até o namorado.
Namorado.
Quem poderia imaginar que um dia minha neta namoraria o neto do meu molengo.
Levantei-me da cama andando vagarosamente até a janela do quarto, que tinha uma vista direta para o portão da casa. Por trás das grades, eu podia observar uma multidão de pessoas e repórteres. Respirei fundo, mudando o foco de meu pensamento.
Era incrível como as coisas tinham mudado. Era incrível que, tudo o que eu conhecia quando era jovem, tivesse se alterado tanto. Eu não poderia dizer que foi em pouco tempo. Cinqüenta anos não era pouco tempo. Mas de qualquer forma, era como se tudo tivesse acontecido rápido demais. Era como se alguém tivesse corrido minha vida inteira diante dos meus olhos e eu não pudesse fazer nada para interferir.
Mel e Chay, por exemplo. O casal de amigos que nunca suspeitei que fosse se separa. No final do colegial, Melzinha seguiu para uma grande universidade de direito em outro estado, enquanto Chayzito resolveu se dedicar aos ideais de sua mais nova e ao mesmo tempo antiga banda. Com a entrada de Thur, “Hey Dudes” nunca mais seria a mesma.
Mel se tornou uma grande advogada. Acho que nem eu mesma alcançava as proporções de seu sucesso na área. Ela se casou com um engenheiro que conhecera na faculdade e agora é mãe de dois garotos.
Chayzito, não me entenda mão, também não ficou sozinho. Casou-se com uma das várias modelos que conheceu durante as turnês, a que intitula de sua melhor amiga. Porém, ao contrário de Melzinha, nunca teve filhos.
Sophia e Micael continuam muito bem, obrigada. Casaram-se assim que se formaram no colegial, e com o sucesso da banda Mica pôde sustentar a família que crescia. Depois de alguns anos, não eram mais apenas os pezinhos de Chelsea a preencher o lar Borges de alegria. Micael e Sop tiveram mais dois filhos homens, sendo que um deles – para a imensa alegria do pai – tinha se tornado um jogador de futebol bem sucedido. Agora já eram quase bisavós. A filha de Chelsea se casaria em outubro desse mesmo ano.
Rod.
Quando era pré-adolescente, na Highgate, Rod era apaixonado por uma líder de torcida... Uma tal de Ashley, por quem cultivou um amor platônico até um ano antes de eu chegar a Inglaterra. Como uma fascinante jogada do destino, hoje estavam casados e tinham uma filha, Emma, mãe de Dimitri.
Com um suspiro doloroso, olhei a porta do quarto de hóspedes. Saí de lá dando pequenos passos, seguindo pelo corredor acarpetado da casa até o quarto do casal. O meu quarto.
Coloquei as duas mãos no batente da porta quando cheguei, olhando o aposento. Ainda era largo e espaçoso. Ainda tinha a mancha de vinho queThur derramara na parede em um dos nossos primeiros anos vivendo ali. A janela tinha a mesma vista. O tapete estava no mesmo lugar e a cama ainda tinha o mesmo cheiro.
Então por que parecia tão vazio?
Eu sabia que todos os meus amigos estavam me esperando no andar debaixo. Todos aqueles amigos que, depois de cinqüenta anos, eu ainda podia chamar de meus. Sabia que, junto com eles, estariam meus três filhos: Alana, Viola e David.
Eu sentia meu interior definhado. Sentia meu coração ferido e fraquejando a cada batida. Mas, ao contrário de uma lágrima – que era o que se esperaria dessa situação – minha face apresentou um sorriso.
De todas as promessas que Thur me fizera durante nosso tempo juntos, apenas uma tinha ficado pendente:
Voltar pra casa.
É incrível como nossa vida é frágil. É incrível como nosso coração pode parar de bater por tão pouco. Foi incrível quando, naquela madrugada de domingo, recebi uma ligação do hospital.
Voltando da empresa de seu pai, onde tinha ido resolver assuntos pendentes, Thur sofreu um acidente de carro. Um simples acidente de carro, que foi o responsável por acabar com toda a alegria, sonhos, dor e lembranças que ele tinha. Um acidente que foi o responsável por acabar com todas as lembranças que ainda poderíamos ter.
Thur foi como um sonho bom. Daqueles dos quais nós nunca queremos acordar. Dos quais nunca queremos nos despedir. Mas há uma hora, a hora mais difícil, em que teremos que abrir os olhos. E anteontem, eu tinha aberto os meus.
Olhei no meu relógio de pulso as horas. Faltavam duas horas para o enterro. As pessoas me esperavam como anfitriã do velório.
Voltei a caminhar pelo corredor em direção as escadas e em seu topo, quando ali parei, observei cada um dos rostos que me fitavam tristemente.
Melzinha e Chayzito. Sop e Mica. Rod.
Os mesmos olhares tristonhos de cinqüenta anos atrás. A mesma essência.
Sorri cordial a eles, com apenas um pensamento em mente:
Ao contrário do que Thur acreditava em sua juventude, seu velório não seria vazio. Seus amigos estariam lá. Seus fãs estariam lá. Eu estaria lá, e choraria o equivalente a Highgate inteira.
Cheguei ao último degrau onde David, meu filho caçula, me recebeu com os olhos vermelhos. Ele me abraçou firme, enquanto eu afagava seus cabelos finos e macios, iguais aos do pai.
Assim que ele se afastou, pude olhar novamente, através da minha vista já gasta, a imagem mais próxima que existia do meu amado aos trinta e sete anos. Sorri para David, que ao contrário de mim, parecia incapaz de esboçar qualquer movimento que espelhasse felicidade.
Alana e Viola me alcançaram em seguida, apertando a mim e ao irmão em um abraço conjunto. Alana, sempre a mais emotiva, dava soluços altos e gemia palavras desconexas.
Viola, como mais velha, tentava passar aos irmãos a melhor imagem que podia de controle.
E assim, como meus três filhos, amigos e família foram se aproximando de mim para me entregar seus “pêsames”.
Confesso que fiquei estática enquanto faziam isso. Imóvel, inexpressiva, como uma boneca de plástico. Às vezes eu conseguia sorrir e dizer algum: “obrigada”, mas o resto simplesmente se tornou um grande branco.
Pêsames.
Creio que nem eu sentia isso por mim mesma. Sabia que, onde quer que estivesse, Thur estaria feliz. Ele enfim tinha conhecido a morte e bem mais tardiamente do que almejava quando nos conheceram.
“Obrigado por me salvar”, tinham sido as exatas palavras de Thur em nosso casamento.
E o único pesar que eu tinha era de, dessa vez, não poder tê-lo salvado.

Pedi para que todos fossem pra suas casas.
Eu estava bem, garanti, não precisava que outras pessoas fossem passar a noite comigo para o caso de eu me sentir sozinha. Pedi encarecidamente para meus filhos que voltassem para suas famílias.
Caminhei até o quarto do casal, pensando na grande falsidade por trás daquela solidariedade. Para afastar a solidão eles passariam a noite comigo um, dois, talvez até três dias. Mas a saudade tinha se adiantado. Ela me acompanharia eternamente.
Sentei na cama segurando um pires, onde uma vela se apoiava. A forte chuva do lado de fora tinha acabado com a eletricidade, e a única forma de que eu enxergasse meu caminho de volta era com o auxilio daquela pequena chama.
Pequena, mas efetiva. O queimar do pavio iluminava todo o quarto, mesmo que de maneira fraca, fazendo com que eu me sentisse na penumbra. A chama oscilava, de modo que minha sombra também se movesse.
Em frente a minha cama, um espelho. Mirei meu rosto já enrugado. Meus cabelos curtos, agora em um tom de castanho claro, estavam atrapalhados na cabeça.
“Tenho que arrumá-los antes que o Thur...” Mas ele nunca ia chegar. Ele nunca ia ver.
Tirei minhas pantufas, passando minhas pernas por baixo das cobertas e sentindo elas se aquecerem. Estendi minha mão para pegar, ao lado da vela em meu criado mudo, a foto que eu guardava com mais carinho:
Mel tinha saído péssima. Estava reclamando de alguma brincadeira que os garotos fizeram, então tinha saído falando. Seus cabelos pretos e curtos eram mais azulados do que atualmente. Seu corpo miúdo conseguia ser ainda mais fino e esguio que hoje. Chayzito, a seu lado, olhava-a com olhos tão ternos e apaixonados que era impossível acreditar que não tivessem ficado juntos. Seus cabelos loiros eram ressaltados por uma única mecha negra, que tinha feito questão de que fosse na franja. Seu sorriso singelo reluziu à luz da máquina.
O próximo era Rod.
Ele também não tinha saído muito bem devido a gargalhada que dava da brincadeira de Mica. O castanho de seus olhos, semicerrados graças à proporção do sorriso, mal podia ser distinguido. Seu cabelo loiro acinzentado, assim como os de seu neto Dimitri, estava completamente desordenado.
Mica também ria, mas com os olhos azuis e infantis bem voltados para a câmera. A seu lado, Sophia – de longos cabelos amarronzados – carregava a pequena Chelsea e tentava disfarçar um sorriso.
No canto direito da fotografia, estávamos eu e Thur. Abraçados e nos olhando com cumplicidade. Ele, com seus longos cabelos castanhos, esboçava um sorriso esperto. Eu, ao lado, jovem, bonita e saudável, tudo o que eu já não era hoje, apenas reagia a seu corpo. Eu estava inclinada em sua direção, com um sorriso largo e o brasão da Highgate, em meu uniforme, quase totalmente escondido por meus cachos achocolatados.
Uma gota em meus olhos, uma lágrima, desceu por minha bochecha, levando com ela toda a minha saudade, meu sofrimento, minha dor.
Coloquei novamente a foto no criado mudo, recostando-me nos travesseiros altos para tentar dormir. Mas eu sabia que, como nas outras noites, fechar os olhos e sonhar seria impossível. O meu lado direito estava vazio e frio e não havia nada que eu pudesse fazer para reverter àquela situação.
- Lembro-me – falei sussurrado. – de quando eu chamei por você e você veio ao meu encontro. Na casa de Scott. Pergunto-me que se eu fizesse a mesma coisa hoje, você viria me encontrar. Eu não sou mais tão bonita, meu querido. Nem, provavelmente, tenho mais nada a lhe oferecer. Mas eu queria que você estivesse aqui, Thur.
E quando me virei para apagar a vela, ouvi um barulho próximo a janela. Um guincho vindo da cadeira de balanço me fez imediatamente voltar o olhar naquela direção.
Para minha surpresa, ainda que eu estivesse velha e devagar, lá estava ele, atendendo o meu chamado.
Meu Thur estava parado na frente da janela, tão lindo quanto eu lembrava que ele era em nossa época de juventude. Vestia seu uniforme da Highgate da mesma forma como eu havia guardado em minha mete: a calça de pregas preta, a gravata vermelha e as mangas do terno arregaçadas.
Seus olhos negros, mais brilhantes do que nunca, fitavam-me com um misto de curiosidade e fascínio. Em seus lábios estava estampado seu típico sorriso malicioso, do qual eu me lembrava de ter visto tantas vezes.
Thur esticou uma das mãos em minha direção e abriu a boca para falar, sua voz tão nítida e profunda como se estivesse realmente presente:
- Com medo, Marques?
Eu sorri, levantando-me e andando até ele a passos de tartaruga. Segurei sua mão, quente, sólida e macia como a do meu Thur de dezoito anos:
- Eu não tenho medo de você, Aguiar.


Fim.

Quero comentários
Escrita por Lan
e adaptada por Brubs Barros

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17 Comentários

  1. Que triste a Mel nao ficou com Chay o Thur morreu! Gostei do final ate a parte q o Thur morreu! Ate chorei :'(

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  2. Que medoo final legal e chatoo ao msm tempo =(

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  3. AI q lindü que pena q o Thur morreu .....Choreii!!:'(

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  4. Nossa é muito linda essa historia, mais foi muito triste quando o Thur morreu.

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  5. Aii choreii....coitadoo o thur morreu

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  6. Nossa eu chorei muitoo tipo muito mesmo :'( parabens quem escreveu

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  7. Mt perfeita essa web !! to chorando ate agora

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  8. Meu deus linda a web!! Acho que eu não vou parar de chorar hahahahahha! Queria o final com o thur vivo!!!! Mas msm assim a web ficou muito boa :):):):)

    BeiJUs

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  9. chorei mto! perfeita sem mas,o final foi o melhor possível,pq nem tudo pode ser flores,o importante é que lu e thur permaneceram juntos,na saúde na doença,na tristeza na alegria desde os 17 e 18 anos,até que a morte os separem. parabéns pela Web,e obrigada,obrigada pois eu lí uma das melhores webs ever,acho que vc vai se dá bem como escritora,quem sabe daqui a alguns anos eu não vejo seu nome na capa de um livro no best seller!

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  10. linda a web, mas não gostei do final, da Mel e do Chay não terem ficado juntos, e da morte do Thur, com isso a web ficou muito triste, dramática demais!

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  11. a historia e muuto triste ,chorei de mais aqui agora tadinha da luinha pelo menos ela chomo ele e como sempre ele apareceu melzinha nao ficou com o chay thur morreu chorei mto! perfeita sem mas,o final foi o melhor possível,pq nem tudo pode ser flores,o importante é que lu e thur permaneceram juntos,na saúde na doença,na tristeza na alegria desde os 17 e 18 anos,até que a morte os separem
    By:Natasha

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  12. Minha cabeça ta ate doendo de tanto chorar amei sua web linda linda linda

    By; Ayane

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  13. Sério, chorei :'( o final foi triste :'( Mas mesmo assim mto bom, eu to chorando é sério :"( nunca li uma webq ue fazesse eu chorar :'(

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  14. Li pela segunda vez, e ainda consigo me emocionar, acho que encontrei dois olhos em minhas lagrimas :'(

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  15. nossa, nunca chorei tanto por uma web, só tenho uma palavra para descrever: Perfeita!

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  16. vey, li essa história indicada por uma amiga. chorei desde o momento q Thur morreu até o final. eu nunca choro com facilidade por uma história. mas essa, sem dúvidas, mexeu mt com meu emocional de uma forma tão ampla... que eu me recusava a não chorar. mesmo q eu estivesse em um local público. dane-se eu não ia deixar de chorar. minhas emoções se envolveram num misto de divertimento, amor, compreensão, alegria, tristeza e tantos outros enquanto eu lia essa fantástica história. muito obrigada aos escritores. pq se não fosse por vcs... eu nunca teria a oportunidade de ler uma das mais inesquecíveis histórias de toda a minha vida.

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  17. Acho que mesmo depois de tanto tempo que foi postada, ainda passa emoções para cada um que ainda lê!

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